Por Natália Viana
Documentos a serem publicados hoje pelo WikiLeaks descrevem desde as primeiras negociações para o engajamento brasileiro no Haiti à força da missão da ONU, em 2004.
No Brasil havia dúvidas sobre a legitimidade da presença da ONU no país, já que o ex-padre de esquerda Jean-Bertrand Aristide foi retirado do poder por um golpe militar e retirado do país pelas forças americanas.
Na visão dos EUA, pesou mais o interesse do Brasil em aumentar sua influência na América Central e a pretensão por um assento no Conselho de Segurança da ONU.
Os documentos também mostram que o Brasil pasou por cima da Constituição para ir ao Haiti – e avisou os EUA que faria isso.
“Manejando” a Constituição
No dia 19 de março de 2004 (20 dias depois de Aristide sair do país), a então embaixadora americana Donna Hrinak se reuniu com Vera Pedrosa, subsecretária para assuntos políticos do Itamaraty, para pedir rapidez no emprego das tropas.
Ouviu que a ajuda iria demorar e provavelmente só se daria de depois dos 90 dias iniciais previstos pela missão da ONU. Além dos problema de orçamento e planejamento, o congresso teria que aprovar o envio das tropas.
Outro ponto discutido foi a atuação do Brasil em um mandato do Capítulo 7 em vez do capítulo 6. Segundo o estatuto da ONU, o Capítulo 6 significa uma operação de manutenção de paz, enquanto o capítulo 7 significa uma missão de imposição de paz.
Vera explicou ao embaixador que a Constituição brasileira só permite o emprego em casos do capítulo 6, mas disse que isso seria “manejável”, enquanto houver interesse político do governo brasileiro em participar.
Por conta desse “jeitinho”, a Minustah (a força da ONU liderada pelos brasileiros), empregada em abril de 2004, significou uma ruptura com a política brasileira anterior de participação em missões de paz.
Na reunião, Vera Machado também desmentiu que o Brasil tenha oferecido asilo a Aristide ou recebido um pedido nesse sentido, dizendo que não veria tal pedido “com entusiasmo”.
Na mesa de Lula
Marcel Biato, ex-assessor de Marco Aurélio Garcia (assessor especial da presidência para assuntos internacionais), reuniu-se com o representante político da embaixada, Dennis Hearne, no dia 26 de abril para contar que o plano detalhado de emprego das tropas brasileiras já estava na mesa do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O maior problema no Congresso, segundo Biato, seria o orçamento. O governo estimava cerca de 50 milhões de dólares, “mesmo valor liberado para estados brasileiros para gastos com segurança pública – um tema candente por causa da recente explosão de crime organizado no Rio de Janeiro”, diz o telegrama.
Até janeiro de 2010, o Brasil gastou R$ 703,58 milhões com o envio e manutenção de tropas no Haiti.
No encontro, Biato explicou ainda que o apoio de Lula à empreitada era “robusto”, mas o governo teria que ganhar a imprensa e as críticas da esquerda (incluindo o PT) de que o apoio ampliaria a “hegemonia” americana. E avisou que os termos usados na resolução do grupo “Amigos do Haiti” iria ajudar nesse sentido.
Hearne já havia falado com o embaixador Carlos Duarte, da divisão da ONU no Itamaraty, sobre o lobby brasileiro para que EUA, França, Canada e Chile adotassem uma linguagem que convencesse o congresso brasileiro, ligando o uso de tropas à visão brasileira de desenvolvimento social.
No telegrama, enviado em 27 de abril, a ex-embaixadora avalia ainda que os militares brasileiros estavam andando “a passos de lesma” no planejamento da operação militar.
Um gargalo seria os equipamentos americanos a serem comprados pelo Brasil para a operação – o Brasil teria que assinar um contrato de respeito à propriedade intelectual da tecnologia americana.
O telegrama termina em tom otimista, notando o “talento inato dos brasileiros em organizar projetos complexos no último minuto de maneira competente”.
Missão serviria para expandir influência na região
Outro documento, de 25 de março, mostra que na visão dos EUA o Brasil pretendia expandir sua influência na América Latina e usaria o Haiti como argumento para “vender” seu peixe, inclusive para obter apoio dos países da região pelo assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Escrito pela ex-embaixadora Hrinak, o documento cita uma reunião com o diplomata Antonio Carlos Atunes, da divisão de México, América Central e Caribe, do Itamaraty , na qual ele menciona como principais países de interesse a Costa Rica (um parceiro “natural” nos fóruns multilaterais), a Guatemala (o presidente Lula estaria desenvolvendo “uma boa relação” com o presidente conservador Oscar Berger) e o Panamá (de “grande interesse” para investidores e empresários brasileiros).
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