sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Allen Frances: Um alerta a médicos e pais sobre o déficit de atenção

por Heloisa Villela, especial para o Viomundo, de Washington

Enviei o e-mail como tantos outros, sem grandes expectativas já que o destinatário era um figurão. Psiquiatra e professor Emeritus da Unversidade Duke, o Dr. Allen Frances presidiu a força-tarefa que elaborou o DSM-IV, o manual americano de diagnósticos das doenças mentais, publicado em 1994. É uma verdadeira bíblia para os psiquiatras americanos. Com base no que está escrito ali, eles decidem os diagnósticos. Em geral, o tratamento envolve drogas. Agora, está em elaboração o DSM-V, que vai promover mudanças na versão anterior. Foi por conta das mudanças que escrevi o e-mail. Surpresa foi o telefonema, menos de vinte minutos depois de apertar a tecla “enviar”.

O Dr. Frances chamou de volta rapidamente e explicou: “É muito importante falar sobre isso, promover o debate”. Ele está preocupado. Acha que a versão anterior do DSM ampliou demais as definições de algumas doenças, como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, permitindo incluir no diagnóstico pessoas que, segundo ele, jamais deveriam ter sido tratadas. Pior, diz ele, o DSM-V pode tornar o problema ainda maior. Por isso, o dr. Frances está encabeçando um abaixo-assinado pedindo mudanças e sugere que profissionais da área, do mundo inteiro, se unam para pressionar.

No Brasil, a grande maioria dos psiquiatras infantis adota os critérios americanos para diagnosticar e tratar o TDAH, apesar das grandes diferenças entre a nossa cultura e a dos Estados Unidos. Este transtorno é detectado por um conjunto de comportamentos da criança considerados desviantes. Diferentes do que se espera, na média. Mas me parece que o comportamento esperado das crianças, no Brasil, tem lá suas diferenças em relação ao que os pais e educadores esperam da criançada aqui nos Estados Unidos. Neste fim de semana, do dia 11 ao dia 14, vai se realizar em São Paulo um seminário sobre “Medicalização da Educação”. Serei uma das palestrantes. Por conta disso, decidi fazer a entrevista com o Dr. Frances.

Viomundo – O sr. tem escrito, com frequência, a respeito do grande número de casos de TDAH nos Estados Unidos e no mundo. Por quê?

Allen Frances – Eu acho que já existe um aumento surpreendente e alarmante do número de diagnósticos de TDAH e se segue a isso o excesso de prescrições de estimulantes. Parte disso tem a ver com mudanças feitas no DSM-V mas é, principalmente, consequência da campanha de marketing agressiva da indústria farmacêutica, que começou três anos depois da publicação do DSM-V. E foi incentivada por dois motivos: trazer para o mercado novas drogas que ainda estavam sob patente e por isso mesmo poderiam ser vendidas por um preço alto. Em segundo lugar, nos Estados Unidos houve uma mudança na regulamentação que permitiu à indústria farmacêutica fazer propaganda direta ao consumidor, permitindo a eles colocar anúncios na TV, divulgar informação na internet, atingir pais, crianças, professores e médicos, especialmente clínicos gerais que foram encorajados a ver TDAH em comportamentos que antes não eram considerados parte do TDAH. Isso incentivou diagnósticos fáceis e um grande aumento no número de prescrições. O DSM-V promete piorar isso tudo ainda mais.

Viomundo – Como?

Allen Frances – Reduzindo os padrões para se chegar a um diagnóstico infantil e pior, mais temerário, tornando muito mais fácil chegar a um diagnóstico em adultos. E isso é um problema porque sintomas de distração e falta de concentração estão presentes na maior parte da população e também em todas as doenças psiquiátricas. De acordo com o critério sugerido pelo DSM-V, várias pessoas que têm problemas normais de concentração no dia-a-dia serão erroneamente diagnosticadas com TDAH. E também vai aumentar o número de diagnósticos equivocados de outras doenças psiquiátricas.

Viomundo – O Sr. pode dar exemplos mais concretos sobre as mudanças desses padrões?

Allen Frances – No caso do TDAH, a doença tem que aparecer antes dos sete anos de idade. Isso foi feito para limitar o diagnóstico a pessoas que tinham sintomas clássicos desde cedo e diferenciá-las das pessoas que mais tarde apresentam problemas de atenção, comuns na vida, ou que tenham outras doenças psiquiátricas. O DSM-V vai elevar o critério para 12 anos de idade, tornando tudo mais confuso e incluindo adolescentes e adultos. Será um grupo de TDAH que não fazia parte do DSM-IV. E também vai reduzir de 6 para 3 o número de critérios exigidos (nota do Viomundo: o DSM-IV lista vários sintomas de TDAH e se o paciente apresentar 6 deles, é diagnosticado como portador. De acordo com o DSM-V, bastarão 3 itens da lista).

Será facílimo para adultos normais, eu e você, sermos diagnosticados com a doença e mais difícil para pessoas com outras doenças psiquiátricas que causam problemas de atenção e distração, serem diagnosticadas corretamente e não com TDAH. E existe outro problema: os remédios usados para tratar TDAH são muito populares para melhorar desempenho ou como recreação entre os “normais”. Nos Estados Unidos existe um enorme mercado secundário, ilegal, dessas drogas, compradas com prescrição médica e passadas adiante para serem vendidas. Então, não é apenas um problema para pessoas que serão erroneamente diagnosticadas, mas também é um problema de saúde pública incentivar o aumento de prescrições dessas drogas quando não é realmente necessário. E torná-las ainda mais disponíveis no mercado ilegal.

Viomundo – E me parece, também, que não existe um estudo científico conclusivo a respeito dos possíveis efeitos colaterais do uso de longo prazo desses remédios para os cérebros das crianças, que ainda estão se desenvolvendo.

Allen Frances – Acho que de forma geral, o que aconteceu nos últimos 15 anos foi uma abertura de mercado massiva de novos remédios para a indústria farmacêutica para o uso de antipsicóticos, antidepressivos e estimulantes para crianças e adolescentes. E isso foi feito como uma experiência de saúde pública e ainda não sabemos quais serão os efeitos. E foi feito com base em pouquíssima informação. Muitas das sugestões do DSM-V podem ser úteis nas mãos dos especialistas que as estão escrevendo. Que se especializam nessa área, têm bastante tempo para avaliar e que usarão os critérios com bastante cuidado. O que eles precisam entender é como tudo isso é traduzido para o mundo real da medicina, com médicos sobrecarregados. O que a indústria farmacêutica conseguiu fazer foi “educar” médicos, pais, professores e muitas vezes as próprias crianças para reinterpretar qualquer problema que estejam apresentando como TDAH. Muitas vezes isso pode ser útil, mas em muitos casos, foi bem além do limite. Existe um problema mundial, hoje, que é do excesso de diagnósticos e de medicalização da TDAH que o DSM-V vai agravar, especialmente no caso dos adultos.

Viomundo– O sr. não participou da redação do DSM-V, certo?

Allen Frances – Não participei até dois anos atrás, quando me alarmou o número de sugestões descuidadas e arriscadas que podem levar ao excesso de diagnósticos e tratamentos. Por isso, venho criticando nos últimos dois anos e meio.

Viomundo – O sr. presidiu a força-tarefa que elaborou o DSM-IV. Quando se deu conta que ele estava ampliando demais as chances de diagnóstico?

Allen Frances – Nós fomos muito cuidados e até conservadores na elaboração do DSM-IV. O que não antevimos suficientemente foi que as sugestões poderiam ser mal utilizadas na medicina geral. Fizemos pouquíssimas mudanças em relação ao sistema anterior. Mas o que acho que aconteceu foi que o material do livro foi promovido, pelas empresas farmacêuticas, de forma que os médicos não usaram os critérios como se sugeria, exatamente, e sim para fazer diagnósticos apressados, sem o rigor exigido pelos critérios estabelecidos. Então, acho que existem duas fases: uma quando foi escrito e outra de como foi usado. E acho que a melhor coisa que o DSM-V pode fazer agora é, ao invés de escancarar a cerca ainda mais, é limitar os critérios e incluir alertas sobre o excesso de diagnósticos. Mas o que o DSM-V está fazendo é tornar ainda mais fácil diagnosticar. E estou sugerindo justamente o oposto.

Viomundo – O sr. tem alguma esperança de que essas mudanças serão feitas?

Allen Frances – Existe um abaixo-assinado circulando agora. Cerca 5.000 profissionais da área de saúde mental o assinaram na primeira semana. Se esse abaixo-assinado decolar e centenas de milhares de pessoas o assinarem, acho que o DSM-V vai ter que tomar conhecimento. No jornal Psychiatric Times existe uma série de artigos sobre o assunto, nas duas últimas semanas (www.psychiatrictimes.com).

Viomundo – No fim de semana vai haver um seminário no Brasil sobre medicalização da educação. Ele foi organizado pelos conselhos regionais de psicologia do Rio de Janeiro e de São Paulo e, entre outras coisas, vai discutir como evitar este excesso de medicalização infantil.

Allen Frances – Isso é o mais importante. E por isso liguei para você de volta em dois minutos. Porque a sociedade precisa discutir este assunto. Agora, é importante também entender que essa discussão não é contra a psiquiatria. Aqui nos Estados Unidos, a maior parte dessas prescrições é escrita por pediatras e médicos de família, por exemplo. Então, é claro que o DSM-V tem que ser modificado e ser mais cuidadoso. Mas os pediatras que passam seis minutos com uma criança e não tem treinamento específico em problemas psiquiátricos e são muito influenciados pelos vendedores dos remédios… a educação tem que ser ampla, para todos os médicos.

E é preciso, também, reeducar o público porque se espalhou a ideia de que o TDAH é sub-diagnosticado e mais crianças precisam tomar remédios. Acho que isso é verdade para crianças que claramente são portadoras do transtorno. Não queremos que essas crianças fiquem sem o atendimento. Em alguns casos, a medicação é a única saída. Então, é importante enfatizar que isso não é um ataque ao diagnóstico ou à psiquiatria e sim ao excesso. Não queremos que os pais parem de medicar as crianças. Mas queremos que seja um alerta para os pais, que eles devem buscar uma segunda opinião. Queremos reduzir a tendência futura de diagnosticar rápido demais, sem cuidado. Mas para as crianças que realmente precisam, não queremos que sejam desencorajadas. Quando o diagnóstico é feito com cuidado, o remédio ajuda muito. Mas quando não existe esse cuidado, se causa muito mais problemas do que soluções.

Viomundo – E quando falamos de comportamento, que são a base do diagnóstico do TDAH, não existem expectativas diferentes para o comportamento das crianças, em culturas diferentes?

Allen Frances – Esse tema da cultura é muito difícil. Mas não é apenas isso. Se você tem os dois pais trabalhando fora de casa, a criança parece ter TDAH. Se não estivessem trabalhando, talvez fossem mais tolerantes. Então, os temas sociais e culturais têm importância vital para entender o diagnóstico. Mas é importante notar que se o diagnóstico é feito em um ambiente de muito stress social, é quase a solução mais fácil para problemas reais. E seria um problema tratar como doença um comportamento social normal em uma determinada cultura, que não é considerado adequado em outra.
 

Nenhum comentário: