Autor(es): Lena Lavinas
Valor Econômico - 25/06/2010
Agora o que se quer é que alunos pobres estimulem professores desencorajados. Nada menos didático, formador e civilizatório!
Períodos eleitorais são fases de muito ruído no campo das políticas públicas. Podem suscitar debates que levam à formulação de medidas incrementais e até à criação de iniciativas inovadoras. Por vezes, porém, trazem à tona oportunismos latentes que podem engendrar retrocessos com impactos danosos para toda a sociedade.
O projeto de lei de autoria do senador Tasso Jereissati que pretende "reformar" o programa Bolsa Família inscreve-se na categoria dos retrocessos. Surpreende constatar ter sido aprovado na Comissão de Educação do Senado.
Tal projeto de lei visa criar um benefício variável extra, em valor a ser definido e regulamentado após aprovação da lei, "a ser pago no decorrer dos anos subsequentes aos [alunos] que obtiverem desempenho acadêmico acima da média apurada em avaliação realizada pelo órgão federal competente." Em outras palavras, trata-se de vincular o direito a uma renda monetária, destinada a reduzir a severidade e a intensidade da pobreza, ao sucesso escolar, acentuando o caráter meritocrático e, portanto, excludente, desse benefício adicional, sob o argumento de que "frequência às aulas, por si só, não é indicativo de sucesso escolar".
Quanto a esse aspecto, não há discordância. Da mesma maneira que presença não garante aprendizado, muito menos de qualidade, seria crédulo supor que um incentivo monetário pudesse ser um diferencial perceptível para que crianças de 6, 7, 8, 10 anos resolvessem atingir desempenho acima da média, como advoga o projeto de lei.
Argumentar que "estimulados pelo interesse dos alunos, os professores tenderão a se envolver com a causa desse alunato" é não só desrespeitoso com os educadores deste país mas revela uma profunda ignorância sobre o que é a arte e o dever de formar cidadãos e lhes despertar o prazer de aprender, das descobertas, do domínio do que era antes desconhecido.
Não bastassem os controles já exercidos sobre as famílias beneficiárias, desnecessários porque inócuos, defende o projeto de lei que se abandone o modelo de aferição do desempenho escolar dos alunos realizados pelo INEP, por amostragem, para adotar outro, "semi-censitário", que consideraria apenas o universo dos alunos beneficiários da transferência de renda. Além de estigmatizante, essa proposta é inconstitucional por discriminar os mais pobres e vulneráveis, apartando-os no âmbito do sistema de avaliação do ensino público. O SAEB é uma avaliação amostral e o Prova Brasil, próximo de um censo, mas com cobertura limitada. Transformá-los em avaliações censitárias implicaria gastos elevadíssimos. Não surpreende observar que, no caso, gastar mais - e sobretudo gastar mal - não preocupe os grandes defensores do corte dos gastos públicos.
Finalmente, cabe registrar aquilo que já é amplamente conhecido por quem atua na área da educação: dinheiro não é incentivo ao bom desempenho no ensino fundamental e médio. Uma avaliação sobre os impactos sociais e educacionais do Programa Bolsa Escola do Recife, financiada pelo Banco Mundial e pela OIT ao final dos anos 90, realizada junto ao universo de crianças beneficiárias e não beneficiárias, e tendo aplicado provas de matemática e português ao grupo e ao controle, constatou que o benefício não tinha correlação com a performance dos alunos. Seu maior efeito era legitimar a permanência na escola das crianças cujo desempenho era deficiente, o que fatalmente as empurrava para fora do sistema educacional no médio prazo. Outro resultado da pesquisa foi estabelecer que a qualidade da escola (infraestrutura) e dos professores (formação) tinha impacto positivo sobre o desempenho dos alunos, beneficiários ou não.
Nem o Oportunidades do México, cujo valor do benefício aumenta à medida que a criança avança no ensino seriado, associa de forma estrita benefício a desempenho. Passar de ano é suficiente para receber um incentivo maior. Quando à frente do governo do DF, o senador Cristóvão Buarque instituiu uma poupança que seria disponibilizada para o aluno uma vez concluído o ensino fundamental, como um prêmio ao esforço. Agora o que se quer é que alunos pobres estimulem professores desencorajados a melhorar seu próprio desempenho em troca de mais dinheiro. Nada menos didático, formador e civilizatório!
Benefícios assistenciais têm por finalidade dirimir o grau de destituição dos extremamente pobres. O Bolsa Família tem impacto relativamente modesto em retirar da pobreza seus beneficiários. Mas sua incidência na redução da indigência é significativa e valiosa. É um programa que pode ser aprimorado, antes de mais nada tornando-o um direito de todos que preenchem os requisitos de elegibilidade.
Para os desconhecedores da política social brasileira, cabe assinalar que 50% das famílias que ainda vivem abaixo da linha de pobreza do Bolsa Família - renda familiar per capita inferior a R$ 137,00 mensais - não são alcançadas pelo maior programa assistencial do governo, segundo a PNAD 2008. Ou seja, se algo há a fazer para aprimorar o programa, que se avance na direção certa - garantir um direito assegurado pela lei a quem preenche requisitos para habilitação -, em lugar de multiplicar sanções e reduzir cobertura para aqueles cujas oportunidades são escassas, quando existem.
No país das elites que conseguem obter dedução ilimitada de imposto de renda de pessoa física com gastos em saúde, até para cirurgia plástica, os pobres podem ser nominalmente identificados como beneficiários de programas de transferência pública no site do MDS, em nome da transparência e do controle. Mas os beneficiários de isenções bilionárias no IR que, inclusive, deduzem despesas com educação sem que se avalie se seus dependentes foram merecedores desse incentivo, esses têm direito ao sigilo de sua identidade.
O Brasil tem uma lei de renda básica, até hoje letra morta, e um sistema de seguridade social complexo, moderno, abrangente, onde a assistência é um direito inequívoco. A República e a democracia são incompatíveis com valores de apartação.
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