quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Família do ministro Gilmar Mendes não mede esforços para destruir um adversário político


O prefeito e o coronel

Leandro Fortes 17 de novembro de 2010 às 12:25h

Obcecada por destruir um adversário político, 
a família do ministro Gilmar Mendes não mede esforços. Vale até arruinar as finanças de sua terra natal

Eleito em 2008 prefeito de Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, o notário Erival Capistrano enveredou-se por um pesadelo político sem precedentes. Nos últimos 23 meses do mandato, Capistrano, do PDT, foi cassado e reconduzido à prefeitura três vezes. Ao todo, ficou no cargo apenas nove meses. Os outros 14 foram ocupados pelo candidato derrotado nas urnas, Juviano Lincoln, do PPS, graças a um jogo de manobras judiciais que transformou a vida de Diamantino num caos político e administrativo. A cada troca de prefeito, os cofres municipais sofrem um rombo de, aproximadamente, 200 mil reais. Por conta dessa situação, o lugar caminha rumo ao precipício contábil e social.


Antes como candidato e agora como prefeito eventual, Lincoln é patrocinado politicamente pela oligarquia local, comandada pela família do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mendes usa, inclusive, expedientes do velho coronelismo nativo: vale-se de meios de comunicação sob seu controle para atacar o adversário político. A TV Diamante, retransmissora do SBT no município, virou arsenal de baixarias contra o grupo de Capistrano comandado por um preposto da família, o técnico rural Márcio Mendes. A emissora, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), é uma concessão para fins educativos à União de Ensino Superior de Diamantino (Uned), instituição de ensino superior fundada pelo ministro do STF.

A vida do prefeito eleito de Diamantino se tornou um inferno por ele ter “ousado” vencer as eleições de 2008 contra Lincoln, escolhido para suceder ao veterinário Francisco Mendes, irmão mais novo do ministro. Chico Mendes, como é conhecido na cidade, foi prefeito de Diamantino por dois mandatos, entre 2001 e 2008, pesou a influência política do supremo irmão. Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar, primeiro como advogado–geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e depois como juiz da Corte, não poupou esforços para eleger o caçula da família. Levou a Diamantino ministros para inaugurar obras, lançou programas federais e circulou pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, para intimidar a oposição.

Em setembro de 2008, a família Mendes- aliou-se ao grupo político do ex-governador Blairo Maggi, eleito agora para o Senado. Os Mendes migraram do PPS para o PR e engrossaram no estado a base de apoio do presidente Lula. Não adiantou. Um mês depois, seriam surpreendidos pela vitória de Capistrano por pouco mais de 400 votos de vantagem. O prefeito eleito anunciou, de imediato, a contratação de uma auditoria para verificar as contas da administração anterior, alvo de denúncias de má gestão e desvio de dinheiro. Capistrano conhecia o tipo de inimigo que havia vencido, mas não tinha noção da fragilidade de sua vitória.

A primeira cassação ocorreu em 1º de abril de 2009, três meses após assumir a prefeitura. A decisão foi tomada pelo juiz Luiz Fernando Kirche, titular da 7ª Vara Eleitoral de Mato Grosso. Kirche, figura itinerante da Justiça mato-grossense na região, havia acatado uma representação da coligação de Lincoln na qual o prefeito era acusado de aceitar uma doação de campanha de 20 mil -reais feita mediante um recibo com assinatura falsificada. O documento estava em nome do agricultor Arduíno dos Santos. Em novembro de 2008, Santos depôs no Ministério Público Estadual e confirmou a doação. Dois meses depois decidiu mudar o depoimento e negou ter dado o dinheiro para a campanha do PDT. “Ele foi coagido pelos capangas do candidato derrotado”, acusa Capistrano.

À época, a população de Diamantino surpreendeu-se com a rapidez do processo contra Capistrano. Para se ter uma ideia, em oito anos de mandato o ex-prefeito Chico Mendes sofreu cerca de 30 ações em consequência de supostas falcatruas administrativas, mas nunca foi incomodado pela Justiça. O juiz Kirche havia sido transferido de outra comarca, Tangará da Serra, para assumir a vara eleitoral local. No mesmo dia 1º, logo depois de cassar Capistrano, saiu de férias. Coincidentemente, quatro dias antes, o ministro Mendes tinha estado na cidade natal para rever parentes e amigos. O mesmo padrão iria se repetir no futuro.

Capistrano reverteu a decisão e voltou ao cargo em 23 de junho do ano passado, quando o Tribunal Regional Eleitoral acatou, por unanimidade, um recurso do PDT. Passado pouco mais de um mês, os advogados de Lincoln entraram com uma medida cautelar, com pedido de liminar, para que o candidato do PPS voltasse ao cargo. Lincoln contou, desta feita, com a boa vontade do desembargador Evandro Stábile, então presidente do TRE de Mato Grosso. Stábile decidiu, em 18 de agosto de 2009, cassar novamente Capistrano e recolocar no cargo o preferido da família Mendes. O caso foi parar no Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília. Nove meses adiante, uma operação da Polícia Federal mudaria novamente o rumo da história.

Em 18 de maio deste ano, a PF deflagrou em Mato Grosso a Operação Asafe, referência a um profeta bíblico, para identificar e prender advogados, juí-zes e desembargadores envolvidos em uma quadrilha especializada em vender sentenças judiciais. A ação foi ordenada pela ministra Nancy Andrighi, do STJ. Entre os detidos, Evandro Stábile, que foi afastado da presidência do TRE. Seu sucessor, Rui Ramos, derrubou a liminar e reconduziu Capistrano ao cargo em 13 de junho, pela terceira vez. Em seguida, a relatora do processo de Capistrano no TSE, Cármen Lúcia, considerou a medida cautelar impetrada pelo PPS inválida, dada a nulidade geral do processo. A ministra lembrou que a jurisprudência sobre esse tipo de ação determina que os prefeitos permaneçam no cargo até esgotadas todas as instâncias judiciais. Em vão.

A decisão do TRE havia sido tomada por um vício processual detectado pelo desembargador Ramos. A vice-prefeita eleita, Sandra Baierle, também do PDT, não foi ouvida em nenhuma das fases da instrução processual. Como ela também fora cassada, era necessário tomar seu depoimento nos autos. Por conta disso, o processo retornou à origem, a 7ª Vara Eleitoral de Diamantino. Novamente para as mãos do diligente juiz Kirche. Este voltaria a agir, quatro meses depois, para tirar Capistrano outra vez da prefeitura.

A data escolhida pelo juiz não poderia ser mais emblemática: 30 de outubro, um dia antes do segundo turno da eleição presidencial, justamente quando acabara de chegar à cidade seu filho mais ilustre, Gilmar Mendes. Como no primeiro ato de cassação, Kirche fez a Justiça funcionar a todo vapor em Diamantino para sair de férias em seguida. Na mesma noite, enviou um oficial de Justiça para notificar Capistrano e fazê-lo sair da cadeira de prefeito, mas não o encontrou.

Em 1º de novembro, véspera de feriado do Dia de Finados, com a prefeitura de Diamantino em regime de ponto facultativo, novamente o oficial viu-se frustrado. Foi avisado pela família de Capistrano que ele estava em uma pescaria. Na manhã do dia 3, não houve escapatória. Notificado, o pedetista deixou novamente o cargo para dar lugar ao concorrente derrotado nas urnas. Capistrano entrou com novo recurso e espera voltar ao mandato antes do fim do ano. “Não adianta, não vou renunciar e vou até as últimas consequências.”

Para o prefeito afastado, a estratégia política da família Mendes é a de terra arrasada: tornar a administração de Diamantino inviável e as relações políticas locais tensas o suficiente para propiciar, nas eleições municipais de 2011, a volta de Chico Mendes à prefeitura. Seria uma forma de evitar que as investigações sobre as irregularidades nas gestões de Mendes fossem adiante, embora já tenham sido enviadas ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas do Estado no ano passado.

A auditoria feita por Capistrano nos dois primeiros meses de mandato revelou um corolário de maracutaias, sobretudo, no setor de compras. Quando as escolhas eram feitas por carta–convite, os produtos eram adquiridos por até 66,13% acima dos preços pesquisados.- Quando eram por tomada de preço, o índice chegava a 90% de superfaturamento. “Todos os processos licitatórios apresentam irregularidades”, concluíram os auditores.

Ao assumir a prefeitura, Capistrano encontrou uma dívida de INSS de 8,2 milhões de reais e outra, de energia elétrica, de 6,2 milhões de reais. Muitos contratos eram feitos sem nenhuma lógica administrativa. De uma papelaria de Cuiabá chamada Mileniun foram comprados fogão, geladeira, máquina de lavar, sofá e televisão para a prefeitura no valor de 267,6 mil reais. Muitas propostas apresentadas pelas empresas eram exatamente iguais, na forma e no conteúdo, mas com diferenças mínimas de preço (cerca de 0,3%), expediente típico de simulação de licitação.

Em meio à disputa judicial, Capistrano e seus aliados têm enfrentado a fúria diária do “jornalista” Márcio Mendes, no comando da TV Diamante desde 2009. Mendes apresenta um programa matutino chamado Comando Geral. Sua especialidade é insultar e a-cusar diuturnamente Capistrano de malfeitorias. Ao melhor estilo do coronelismo eletrônico.

A Uned, dona da concessão da tevê, foi fundada em 2000 por Gilmar Mendes. Quem operacionalizou a escola foi Marco Antônio Tozzati, acusado de integrar uma quadrilha de fraudadores que atuavam no Ministério dos Transportes na gestão de Eliseu Padilha. Não há como Márcio Mendes agir sem o conhecimento do ministro do STF.

Além da TV Diamante, Márcio comanda um jornal e o site O Divisor. Também nesses veículos seu esporte preferido é atacar Capistrano, chamado por ele de “prefeito interino” ou “o ainda prefeito” toda vez que retorna ao cargo, embora tenha sido eleito. Mendes desenvolveu um ódio especial pelo grupo de Capistrano depois de perder dois contratos de trabalho, firmados na época do prefeito Chico Mendes. Um, de assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores, que rendia 3,6 mil mensais. Outro, na prefeitura, via a agência de propaganda Zoomp, custava 15 mil reais por mês aos cofres municipais.

Goiano de Joviana (daí o nome Juviano), Lincoln se diz ofendido quando chamado de usurpador. Segundo ele, as cassações de Capistrano são resultado de decisões da Justiça, e não da família Mendes. Ele reconhece, porém, que o município está se tornando ingovernável. “Sei que atrapalha, seria muita infantilidade minha não reconhecer isso.” Lincoln garante não se subordinar a Gilmar Mendes, embora faça questão de lembrar que é amigo da família desde a adolescência. “Esse processo não tem nenhuma influência do ministro, é idiotice pensar isso”, afirma. “O ministro (Gilmar Mendes) é eleitor do Serra, e os Mendes todos votaram no Serra”, informa Lincoln, ao se declarar apoiador de Dilma Rousseff.

Segundo Lincoln, os custos adicionais, sobretudo com pagamento das rescisões contratuais dos cargos comissionados, todos mudados a cada reviravolta na prefeitura de Diamantino, são naturais, mas reconhece a frustração do adversário. “Eu não queria estar na pele do Erival. Acho até que ele confiou no contador (no caso dos recibos supostamente falsificados) e caiu de inocente.” Apesar da insistência em permanecer no cargo, diz não pensar na reeleição. Prefere apoiar a volta do amigo Chico Mendes. “Por motivos políticos, sou contra a reeleição.”

“Em Diamantino, quando se ouve o barulho de rojão, ou é mudança de prefeito ou é chegada de crack”, ironiza a enfermeira Mônica Gomes, secretária de Saúde do município nos períodos em que Capistrano ocupa a prefeitura. Segundo ela, a descontinuidade administrativa provocada pela mudança de prefeitos está prestes a provocar um colapso no sistema de saúde local, inclusive nos programas de atendimento a drogados e pacientes com Aids. O controle da dengue também estaria sob risco, sem falar nos convênios firmados com o governo do estado e com o Ministério da Saúde. “Temo uma evasão de médicos e outros profissionais de saúde por causa do desencanto provocado por esse caos.”

Secretária de Administração da gestão de Capistrano, Cleide Anzil, servidora do município há 18 anos, afirma que cada mudança de prefeito, além de gerar um custo de 200 mil reais em rescisões contratuais desnecessárias, torna a contabilidade da prefeitura inviável. De acordo com ela, quando Capistrano reassumiu o cargo pela terceira vez, em junho, o orçamento do município para o ano de 2010, de cerca de 50 milhões de reais, havia sido consumido por Lincoln. “Tivemos de pedir uma suplementação (à Câmara Municipal) para pagar as contas, mas depois tivemos de sair de novo”, conta, desanimada. “Não sei onde essa loucura vai parar.”

Leandro Fortes

Leandro Fortes é jornalista, professor e escritor, autor dos livros Jornalismo Investigativo, Cayman: o dossiê do medo e Fragmentos da Grande Guerra, entre outros. Mantém um blog chamado Brasília eu Vi. http://brasiliaeuvi.wordpress.com

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