domingo, 27 de fevereiro de 2011

Apartheid social no Brasil: Clube obriga babá a usar branco e barra ida a restaurante

"Clube obriga babá a usar branco e barra ida a restaurante

Pinheiros diz que existem áreas, como piscina e locais de eventos, que possuem regras específicas para acesso"

Lembranças do apartheid

Retirado do Luis Nassif

Por Sanzio

Minha primeira viagem à África do Sul foi em 1985, em pleno regime do Apartheid. Por mais que estivesse preparado para o que iria encontrar, não consegui não me chocar com a realidade impressa em placas colocadas em banheiros públicos, fachadas de restaurantes, portas de ônibus e de estabelecimentos comerciais e bancários, bancos de praças, praias.

"Exclusivo para pessoas brancas" em letras grandes, seguidas de um breve esclarecimento pleonástico, escritas em inglês e africâner, algumas também em zulu. Em cidades com grande concentração de indianos e paquistaneses era comum a adição da advertência em hindi e urdu. Algumas eram acrescidas do esclarecimento de que era uma determinação legal da província ou do município, muitas usavam eufemismos para "brancos" como "raça branca", "europeus" ou "caucasianos".

Voltei várias vezes ao longo dos anos seguintes e sempre me chocava com explicitação da segregação, apesar dos esforços de meus anfitriões em evitar que eu tivesse um contato mais próximo com ela, impedindo-me de andar de ônibus ou a pé, ou levando-me a lugares tão exclusivos que as tais placas eram desnecessárias.

Mesmo assim, houve duas situações que me marcaram, uma pelo meu constrangimento e outra pelo constrangimento de meu anfitrião.

A primeira ocorreu quando atravessei uma passarela para pedestres, num parque em Johannesburgo, pelo lado "errado". A passarela era dividia ao meio por um alambrado, e na entrada havia a sinalização dos lados exclusivos para os brancos e para os negros e "coloureds", eufemismo para todos os não-negros e não-brancos. Decidi atravessar pelo lado dos "coloureds" e fui abordado por um senhor negro, de uns 70 anos, que me chamou a atenção por eu estar no lado errado. Fiquei atônito, ruminando comigo mesmo se aquilo teria sido uma demonstração de orgulho, do tipo "já que foram vocês que fizeram essa merda, tratem de respeitá-la", ou se fora uma demonstração de submissão, de subalternidade.

Comentei o incidente com um cliente, que havia se tornado quase um amigo com o passar dos anos, e ele me explicou que esse era um dever imposto aos negros pelo regime. A crueldade do apartheid havia chegado ao cúmulo de impor essa norma de conduta, que já caira em desuso mas que algumas pessoas mais velhas ainda a mantinham por força do hábito.

A outra situação envolveu exatamente esse quase amigo - jovem, descendente de ingleses e opositor silencioso do apartheid. Nessa época o calvinismo africaner impunha o domingo como um dia sagrado, em que não havia atividade quase alguma. Poucos restaurantes eram autorizados a abrir, apenas alguns dentre esses poucos podiam vender bebida alcoólica ou permitir que seus clientes as levassem, atividades esportivas eram proibidas, a programação televisiva era reduzida e, em grande parte, dedicada a assuntos amenos e religiosos. A diversão, de modo mais amplo, era fortemente condenada e proibida.

Num domingo de verão, esse meu amigo me convidou para um churrasco em sua casa, num dos subúrbios mais exclusivos e caros de Johannesburg. Uma casa enorme, num terreno enorme, com um jardim enorme na frente. Montamos a churrasqueira no jardim, atravessamos a rua para apanhar madeira e gravetos num parque em frente, acendemos a churrasqueira e ficamos bebericando e petiscando enquanto a carne assava. Cada vez que era necessário buscar algo dentro da casa ele ou sua esposa se dirigia até a porta, fazia o pedido para a empregada e aguardava que ela o trouxesse.

Intrigado, perguntei-lhe a razão da empregada não trazer o que havia sido solicitado até nós, em vez de ficarem aguardando na porta. Constrangido, explicou-me que a empregada era a babá de sua filha pequena e morava com eles, o que contrariava a lei, que obrigava empregados domésticos a retornarem para suas casas diariamente. Caso fosse denunciado por algum vizinho, tanto ele quanto a empregada sofreriam sanções, que podiam chegar a alguns meses de prisão. Portanto, havia decidido mantê-la reclusa dentro de casa. Oficialmente, mantinha a filha dela como a empregada da casa, apenas para que esta lhe trouxesse roupas, objetos de uso pessoal, fotos e recados dos demais parentes.

O regime do apartheid terminou oficialmente com a vitória de Nelson Mandela nas eleições de 1994. Voltei ao país várias vezes depois disso, pude constatar as grandes mudanças provocadas pelo fim do antigo regime, embora aqui e acolá ainda se vissem resquícios do preconceito e da discriminação.

Lembrei disso, e decidi compartilhar com os demais leitores, ao ler a matéria abaixo na Folha de hoje:

Clube obriga babá a usar branco e barra ida a restaurante

Pinheiros diz que existem áreas, como piscina e locais de eventos, que possuem regras específicas para acesso

Para coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, regras significam um apartheid social

CRISTINA MORENO DE CASTRO
DE SÃO PAULO

O crachá deve estar sempre no pescoço e a roupa deve ser toda branca. Em alguns dos mais tradicionais clubes de São Paulo, não basta às babás apresentarem carteirinha, como os sócios. É preciso estar trajada de acordo com as regras.

É assim no Pinheiros, no Paineiras e no Paulistano, todos na zona oeste, cujos títulos chegam a R$ 25 mil.

No Pinheiros, algumas babás relatam que são cobradas a usar calçados fechados, mesmo em dias quentes. No Paulistano, é preciso usar "sapatênis, sapatos ou tênis da mesma cor do uniforme".

"Acho discriminação", diz a babá Silvana Santana, 36, que vai ao Pinheiros duas vezes por dia. Na semana passada, ela teve apreendida sua carteirinha (onde se vê escrito "acompanhante") porque vestia bermuda jeans e blusa branca. Foi avisada de que só o patrão poderia retirar o documento.

Outra passou por uma "blitz de babás" e teve a carteirinha retida, pois não usava branco. Ficou "constrangida e envergonhada."

Sua empregadora, que preferiu não se identificar, afirma que ficou tão incomodada que enviou uma carta ao clube explicando que ela não usa uniforme em casa e pedindo que não tivesse de fazê-lo no clube. "Foi indeferido. Alegaram que é regra."

Juliana Rodrigues, 25, também babá, diz que já lhe chamaram a atenção no Pinheiros porque sua blusa branca tinha "uma florzinha no canto" e porque usava sandália "neste calor".

Diz ainda ser proibida de ir ao restaurante acompanhada apenas das crianças e conta que um sócio já pediu que ela se levantasse de um banco perto da piscina.

O Pinheiros confirma que as babás só podem ir ao restaurante infantil.

Sócia do clube, a professora Nuria Carbó, 35, considera o uniforme discriminatório. "Passaram a vir de branco porque muitos sócios reclamaram da presença delas." Já Paula Krishnan, 37, também sócia, acha que a regra é uma forma de controle. "Assim como os funcionários do clube, [as babás também] têm identificação."

O coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim Sampaio, vê discriminação na exigência da roupa branca e, sobretudo, no veto ao restaurante.

"O clube tem o direito de saber quem está adentrando a dependência, até por questão de segurança, mas a carteirinha basta para isso", diz.

"É um constrangimento ilegal a empregada ter que se vestir de forma diferenciada e é absurdo impedir que ela entre no restaurante. Ser obrigada a levantar do banco é um apartheid social."

Segundo o Pinheiros, o clube tem 37 mil sócios e 1.500 acompanhantes de idosos, crianças e deficientes cadastrados. Eles devem apresentar crachá "e portá-lo em local visível durante a sua permanência no clube, como acontece com funcionários em qualquer organização". Uniforme e crachá servem para identificação, diz.

Afirmou que algumas áreas possuem "regras específicas para acesso, podendo ser reservados exclusivamente aos associados". Paineiras e Paulistano não se manifestaram.

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