sexta-feira, 4 de março de 2011

A visão equivocada acerca da conjuntura econômica nacional

A nudez não será castigada



 
(Na última ceia, Jesus diz que alguém à mesa irá trai-lo.
A obra acima é de Andy Warhol, realizada sobre uma pintura de Da Vinci).

Ontem à noite eu tirei o atraso na leitura de vários blogs que acompanho e fiquei impressionado com o nível de confusão a que chegou a nossa aguerrida blogosfera. Vamos tentar botar um pouco de ordem na casa, porque essas coisas começam a crescer demais e viram uma bola de neve. Coloquemos de lado, por enquanto, a relação da presidente com a mídia. Voltaremos a esse ponto depois. O ponto principal, a meu ver, é uma visão equivocada acerca da conjuntura econômica nacional. Vejo esse erro disseminado em toda parte. O amigo Maurício Caleiro, por exemplo, num desalentado post intitulado "Primavera digital chega ao fim", escreveu o seguinte:
Pertence à lógica mais elementar, inescapável, a conclusão de que se o governo Dilma impinge ao país, neste momento, um duríssimo choque anticíclico - como não se viu igual sequer no turbulento início da presidência de Lula, herdeiro da “herança maldita” tucana – o faz porque há um grave problema com as contas deixadas pelo ex-presidente. Negar a evidência de um pronunciado déficit equivale a incorrer em desonestidade intelectual em nome de interesses político-ideológicos[1]
.

Permitam-me omitir a explicação do [1] ao final do texto porque não acrescenta, efetivamente, nada de relevante; apenas tenta eximir Lula da culpa do atual ajuste; a culpa seria mesmo de Dilma, que poderia ter agido de outra maneira.

No próprio post, vários comentaristas já denunciaram a falácia que é comparar o "choque anti-cíclico" de Dilma ao que fez Lula no primeiro ano de seu governo. Mas a questão merece um estudo mais aprofundado de nossa parte, porque esse é ponto que vem causando um grande ruído de comunicação no seio da blogosfera progressista. Alguns mesmos já se prontificaram a saltar do barco. Um comentarista no blog do Azenha chegou a dizer que "Dilma jogou a blogosfera ao mar".

Uso a posição de Caleiro porque é um blogueiro do qual gosto muito e que considero de inatacável honestidade intelectual, e porque reflete um sentimento que se propagou como uma epidemia. Pelos títulos de posts anteriores ao já citado, do mesmo autor, pode-se ver que seu desencanto com a gestão Dilma veio num crescendo: "Governo Dilma: início preocupante", "O retorno do neoliberalismo", até chegar ao "Fim da primavera".

No post do "início preocupante", Caleiro diz o seguinte:

(...) a recusa por um aumento real do salário mínimo não deixa de soar como uma medida excessiva, prescindível e socialmente inadequada, além de geradora potencial de um grande desgaste político-eleitoral (...)

A questão do salário mínimo, portanto, foi uma das causas mais importantes dessa onda de melancolia. Falando em melancolia, como isso me lembra os primeiros anos do governo Lula! Quantos artigos não escrevi denunciando o fundo reacionário por trás daquela horda incansável de desencantados. A blogosfera ainda era muito pequenina à época, mas já estava cheia deles. Sem querer ofender o amigo Caleiro, até porque não me refiro a ele diretamente, mas como isso é pequeno-burguês! Sei que é uma expressão fora de moda, eu mesmo nunca mais a usei e em geral ela não é bem vinda por trazer junto a si preconceito contra toda uma classe de pobres remediados; ela se encaixa, porém, perfeitamente nesse caso. A prova é que a turminha do Psol e da ultra-esquerda, supra-sumo da esquerda pequeno-burguesa nacional, ingressou numa espiral de entusiasmo proporcional ao "desencanto" de alguns...

O debate em torno do salário mínimo no Brasil foi mal conduzido, e como não podemos esperar que a grande mídia ajudasse o governo nesse caso, não posso achar outro culpado que não a própria blogosfera, que subitamente adotou uma postura criminosamente populista, e populista no sentido negativo. As centrais sindicais também cometeram um terrível erro político ao defender um aumento do salário mínimo maior do que havia sido combinado com elas mesmas.

O maior problema do salário mínimo no Brasil tem sido justamente a arbitrariedade com que o mesmo é ajustado ano a ano, gerando uma insegurança muito grande para trabalhadores, empresários e gestores públicos. Pensando nisso, os setores envolvidos pensaram numa fórmula simples e brilhante: o salário mínimo aumentaria segundo a média dos dois anos anteriores. E assim foi feito já em 2010. Entretanto, quando chegamos em 2011, e as centrais viram que, em função do crescimento zero de 2009, o salário mínimo não sofreria quase nenhum aumento real, elas querem mudar a regra? Se o governo fizesse isso, destruiria o acordo costurado com as próprias centrais, e daria margem para que, no futuro, o governo não desse o aumento devido.

Em 2012, o salário mínimo chegará a 616 reais, e até 2014, segundo estimativas conservadoras, o mesmo deverá ultrapassar a marca de 800 reais. De maneira que, em dez anos, o salário mínimo no Brasil ficará em mais de mil reais.

Para isso acontecer, no entanto, a sociedade tem que respeitar as regras. Até porque, se não forem respeitadas, o próprio crescimento econômico será comprometido e aí não apenas o trabalhador deixará de receber aumento salarial como poderá inclusive perder o emprego.

Chegamos agora ao corte de 50 bilhões de reais no orçamento deste ano. Outro ponto que, muito compreensivelmente, suscitou insatisfação em diversos setores, mas que, em função do contexto de confusão já mencionado, contribuiu para solidificar a impressão de que Dilma decidiu tomar um rumo mais conservador do que o adotado por Lula.

Não vou defender o corte, e fiquei muito satisfeito ao ler que a União Estadual dos Estudantes decidiu fazer manifestações contra os cortes na Educação.

Mas a gente deve ver as coisas como elas são: os cortes são tímidos. Na própria Educação, o lugar mais sensível, é um corte que, provavelmente, ficará abaixo ou em torno de 1%. Uma vítima importante do corte serão as emendas parlamentares, e aí confesso que não fico tão sensibilizado.

A imprensa já percebeu que os cortes não são drásticos e por isso mesmo passou a esnobá-los e dizer que o governo podia ter usado uma tesoura mais afiada.

Não perfazem, sobretudo, nenhum "duríssimo pacote anti-cíclico". Boa parte dos cortes serão feitos sob forma de auditorias no serviço público, com vistas a reduzir gastos.

A esquerda, e mormente a blogosfera, deve entender que qualquer redução no gasto público embute economia no bolso do contribuinte (sei que o Estadão afirma o mesmo diariamente, mas não deixa de ser verdade por causa disso), e que é saudável que o governo Dilma esteja preocupado com o erário. Há um fator psicológico importantíssimo nestes cortes, que é obrigar os gestores públicos a cortarem supérfluos e se concentrarem nas prioridades. Nos países mais desenvolvidos do norte da Europa, onde a participação do Estado na economia é muito elevada, há uma preocupação meticulosa com o uso do dinheiro público, preocupação que, definitivamente, não temos por aqui. É importante que o Estado invista mais dinheiro nas universidades federais, mas lembrem-se que até pouco tempo algumas dentre elas usavam verba pública para adquirir cinzeiros de dez mil reais.

Além disso, a guerra de comunicação que assistimos nos últimos anos entre a "mídia golpista" e a "blogosfera" não pode levar a posições sectárias entre representantes desta última. Tem gente assumindo um postura antimidiática caricatural. Pouquíssimos blogueiros combateram mais duramente a mídia do que eu, mas não aprovo a satanização de ninguém, quanto mais a satanização ad eternum. Se um jornal adotar uma linha editorial mais equilibrada, eu só posso elogiar. Minha luta nunca foi para que os jornalões brasileiros se tornassem bastiões do socialismo moderno, mas que apenas abandonassem a mania de manipular a opinião pública através de mentira, falsos escândalos e distorção dos fatos.

É preciso também combater a megalomania. A blogosfera brasileira ainda está muito longe do profissionalismo da grande imprensa (mesmo que seja um profissionalismo eivado de vícios). Temos que nos esforçar e trabalhar duro para elevar a qualidade de nossos posts, aprimorar o visual dos blogs, pensar em formas inteligentes de financiamento. Tem muita gente já pensando nisso. Mas botemos o pé no chão. Ainda somos um exército de liliputianos mambembes. Esse ano eu estou com um trabalho fixo, pegando muitos free-lancers e mais estável financeiramente, mas houve tempos em que eu quase morri de fome como blogueiro. Blog político ainda não dá dinheiro, nem sei se dará algum dia, e isso é uma realidade que temos que pesar, não porque seja tão importante que o blogueiro tenha grana no bolso, mas sobretudo para permitir o aperfeiçoamento dos serviços de pesquisa, reportagem e análise. A blogosfera ainda é instável e amadora demais. Se queremos vencer a ditadura da mídia, temos que mudar isso.

Voltando ao corte de 50 bilhões no orçamento, precisamos entender que ele acontece num ambiente de colossal aumento dos investimentos públicos e privados em todo país. O volume de investimentos esperado para os próximos anos está na casa dos trilhões de reais, de maneira que o corte anunciado é insignificante.

De todos os cortes, para ser franco, o que mais me aborreceu (e creio que não só a mim) foi o da verba para o programa Minha Casa Minha Vida. O que pode me consolar, todavia, é saber que, no conjunto, a verba destinada a programas de casa própria, mesmo com o corte, ainda é bem maior do que em anos anteriores. Espero também que o corte não aconteça (embora eu suspeite que seja exatamente isso que vai ocorrer) entre a parte do programa voltada aos mais pobres; a classe média contemplada pelo programa pode, muito mais facilmente, prescindir dele.

Gostaria ainda de fazer uma última observação. Tá rolando um papo curioso na blogosfera, uma tentativa de encontrar o "tom" certo na forma de criticar o governo Dilma. O Miro Borges escreveu um artigo que resume bem esse debate. Vai um trecho:

O governo Dilma Rousseff não completou ainda nem os “cem dias de trégua” e já causa polêmicas em setores da sociedade que tiveram papel ativo na sua eleição. Alguns se mostram decepcionados e anunciam o seu “desembarque”, adotando posturas típicas de oposição. Outros não toleram qualquer tipo de censura à presidenta e rotulam os críticos de “direitistas”, “afoitos” e outros adjetivos mais baixos. Penso que os dois extremos estão equivocados, erram pela precipitação.

Eu gostei muito do artigo num primeiro momento, mas fiquei com uma pulga na orelha. Li algumas vezes e então descobri alguns pontos sobre os quais gostaria de fazer algumas observações.

Concordo com Miro sobre a precipitação de alguns setores da blogosfera. Mas acho que a grande pujança da blogosfera é justamente essa liberdade perigosa de que gozamos. Ela também se volta contra nós mesmos e, desde que os limites da honra sejam respeitados, creio que devemos ser tolerantes. Não creio que "direitista" ou "afoito" sejam adjetivos baixos. Adjetivo baixo pra mim é filho da puta, viado, esse tipo de coisa.

Mais um trecho do artigo que eu gostaria de comentar:

Retrocessos no campo econômico

O motivo das críticas, mais uma vez, encontra-se no campo econômico. A exemplo do primeiro mandato de Lula, o novo governo se inicia com medidas ortodoxas na macroeconomia – política monetária de elevação dos juros, política fiscal de corte de gastos e política cambial de libertinagem financeira. É o mesmo tripé de viés neoliberal do primeiro mandato de Lula. Com uma diferença básica: Lula podia argumentar que recebeu uma “herança maldita” de FHC, o que exigia medidas cirúrgicas e duras na economia.

Já Dilma Rousseff não tem como usar o mesmo argumento. Ela recebeu uma “herança bendita” de Lula em vários terrenos e tinha tudo para avançar.

Miro está certo. Dilma tomou medidas ortodoxas. Mas não é correto eximir Lula, como aliás todo mundo tem feito, comparando o atual momento apenas ao "primeiro mandato". O segundo mandato de Lula seguiu as mesmas linhas, tanto que o movimento de aumento de juros teve início no ano passado. As pessoas estão confundindo as medidas anticíclicas que o governo adotou em 2008 e 2009, para proteger a economia brasileira da crise internacional, com uma mudança definitiva na política econômica. O governo abriu os cofres nesse período, e agora teve que fechar um pouco a torneira. Mas não vamos exagerar. Os cortes de gastos, os 50 bilhões sobre os quais já falei acima, não são draconianos, e chegam num contexto de grande aumento no nível de investimentos públicos e privados. O orçamento da União em 2011, mesmo com os cortes, é maior do que o de 2010 e várias vezes superior ao do primeiro ano do governo Lula. E considerando a inflação. Saca só esse gráfico que achei no site do Congresso:



Confiram que o investimentos, sem as estatais, pularam de 8,6 bilhões de reais em 2007 para 63,5 bilhões em 2011... Se isso é "duríssimo ajuste fiscal", então que tenhamos mais desses nos próximos anos! Se  pegamos as estatais e o investimento privado, toparemos com um salto ainda mais extraordinário...

Esquecemos a lição que aprendemos com o governo Lula? A fórmula do sucesso de Lula não foi justamente manter uma política econômica austera conjugada a criatividade de gestão, aumento nos investimentos e ampliação e criação de políticas sociais? E aí, foi só esperar. Não é o dinheiro do Estado que faz o Brasil crescer, é o crescimento do Brasil que melhora o Estado. Na agricultura, aprendemos que não adianta exagerar no adubo. O objetivo é fazer a planta crescer saudável, ou seja, manter um crescimento sustentável e reduzir o índice de desemprego. Se o governo Dilma conseguir isso, terá cumprido a sua parte.

Sobre as taxas de juros, também acho lamentável que tenhamos que aumentar, mas no debate sobre o tema, os que defendem que aumento de juros é a melhor forma de combater a inflação tem levado a melhor, isso é inegável, sobretudo porque eles conseguiram... vencer a inflação. E o Banco Central merece crédito porque, quando a inflação se viu efetivamente sob controle, ele iniciou um vigoroso e decidido processo de redução de juros, só estancado porque a inflação voltou a apresentar repiques. O fato concreto é que os juros hoje no Brasil são substancialmente menores do que eram no passado. Confira o gráfico.


O texto de Miro encerra com um convite a uma tomada de posição vigilante em relação ao governo:

Os setores progressistas precisam combinar três ingredientes básicos na luta política: autonomia, inteligência política e pressão. Autonomia para garantir o espírito crítico e vigilante. Inteligência para não fazer o jogo da direita. E pressão social para fazer avançar as mudanças. A soma destes ingredientes só fará bem ao governo Dilma, ajudando a alertar e corrigir erros de rota. A “passividade bovina” não ajuda em nada. De puxa-sacos, Brasília já está lotada.

Concordo plenamente. Mas acrescentaria uma coisa: essa pressão só será efetiva se vier embasada em análises sólidas e coerentes, ou seja, se o item "inteligência política" for para valer.

Sendo uma dessas forças, os setores progressistas devem participar do embate com moderação, sem gastar cartuchos inutilmente, como foi o caso do salário mínimo, onde centrais e governo saíram perdendo, apesar da decisão ter sido justamente o que havia sido acertado anteriormente entre... centrais e governo.

A última frase virou título quando o texto foi reproduzido no blog do Azenha, enfatizando uma estocada agressiva que não era tão dura no original. Ela não é muito coerente com a própria reclamação, no início do texto, contra uso de adjetivos pesados por parte da turma que defende as decisões de Dilma. Entendo, todavia, o que Miro quis dizer e concordo. Temos que ser vigilantes e críticos e exercer pressão para aprofundar as reformas sociais. Mas usar o termo "puxa-saco" é desmerecer a pessoa em vez de se ater à qualidade da argumentação. Se num debate, o sujeito acha que o governo agiu certo ao tomar tal ou qual medida, mesmo que for uma medida conservadora, não é porque é puxa-saco. Ou não necessariamente ao menos. Assim como também não é "traição" à causa dilmista exercer a saudável e necessária crítica. O importante é incentivarmos a franqueza e transparência nos debates. Nossa nudez não será castigada. Nem há um traidor sentado à mesa.

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