segunda-feira, 7 de março de 2011

Carta Maior: Lições brasileiras para os rebeldes árabes

Reproduzido do Carta Maior



Convidado para um fórum de debates promovido pela Al Jazeera em Doha, Qatar, o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, faz um balanço e traça paralelos entre a transição democrática do Brasil recente e o que vem por aí, no rastro dos levantes que tem se espalhado em países sob governos autoritários, no Oriente Médio. Para Celso Amorim, países em transição para a democracia precisam reduzir a desigualdade econômica. A matéria é de Chris Aersnault, da Al Jazeera 
 
Durante duas décadas da ditadura militar seria impensável que uma mulher, ex-revolucionária comandaria o país no século XXI.


Que a transição da ditadura para a democracia possa oferecer algumas lições aos rebeldes no Mundo Árabe, disse o mais duradouro ministro das Relações Exteriores do Brasil, num fórum organizado pelo Centro Al Jazeera de Estudos em Doha, Qatar.

“Quem teria imaginado que um intelectual, um torneiro mecânico e um certo tipo de revolucionária sucederiam uma ditadura militar?”. Celso Amorim, o ex-Ministro das Relações Exteriores e diplomata de carreira falou a uma multidão na quinta-feira, referindo-se aos ex-presidentes e a atual presidente.

“O que quer que ocorra [rebeliões ao redor do Mundo Árabe] criará uma nova situação política no Oriente Médio. Isto é certo”, disse.

E, embora ele tenha se recusado a aconselhar diretamente os egípcios, bahrainis, tunisianos ou líbios, as experiências do Brasil parecem ter alguns paralelos com os acontecimentos em curso na região, hoje.

O passado obscuro do Brasil

Em 1964, os militares brasileiros deram um golpe, afastando do poder uma democracia liderada pelo presidente João Goulart. Os militares fecharam o parlamento em 1968 e os generais criaram uma ‘democracia’ com dois partidos políticos legais – Amorim os descreve como o partido do “sim” e o do “sim, senhor”.

Os militares dissolveram organizações estudantis, atacaram líderes do movimento sindical, censuraram a imprensa e torturaram ou “fizeram desaparecer” seus opositores. Era o tipo de estado cujo comportamento é familiar por demais a muitos árabes.

De 1968 a mais ou menos 1975, a economia brasileira se expandiu, com um crescimento do PIB na casa dos 10%. Como é no entanto comum em governos autoritários, os ganhos não foram amplamente compartilhados. O crescimento não respingou nos pobres e a desigualdade disparou.

“Durante o governo militar, tivemos alto crescimento econômico, mas a desigualdade social aumentou”, disse Amorim. “A coisa mais importante que o o Brasil fez [durante minha gestão nos dois mandatos como ministro das relações exteriores] foi reduzir a desigualdade”.

No Egito de Hosni Mubarak, as privatizações e as assim chamadas reformas pró-mercado, em 2004, “provocaram uma aceleração impressionante do crescimento”, de acordo com uma pesquisa de 2008 do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas 40% da população continuou a viver com menos de 2 dólares por dia, enquanto os preços dos imóveis foram elevados às alturas, tornando-se inacessíveis às famílias de classe média. O bolo pode ter se tornado maior, mas muitos padeiros continuaram com fome.

“Uma sociedade que é muito desigual sempre tem a pressão da instabilidade”, disse Amorim.

O abismo entre “os que têm” – frequentemente aqueles com ligação com o regime – e os que “não têm” é profundo, no Egito. O mesmo é verdadeiro para a Líbia e a maioria dos países árabes.

Para combater a desigualdade, o governo brasileiro, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex torneiro mecânico e líder sindical, iniciou uma série de programas, incluindo subsídios escolares e de renda para os pobres, disse Amorim. Subsídios são concedidos às famílias pobres sob certas condições: por exemplo, que elas enviem seus filhos para a escola.

O dinheiro é prioritariamente entregue à mulher, chefe de família. “Não ocorre assim no mundo muçulmano, [mas] no Brasil, se você dá dinheiro ao pai, ele gasta tudo”, falou Amorim.

Religião e Revolução

Desde que o Brasil se tornou um país democrático, 30 milhões de brasileiros ascenderam à classe média, e outros 30 milhões saíram da miséria absoluta para a pobreza, o ex ministro disse. Mas o país ainda tem um longo caminho pela frente, se o objetivo é eliminar a vasta disparidade de renda.

A transição para a democracia não aconteceu da noite para o dia; foi um processo lento, que transcorreu ao longo dos anos 80. E as instituições religiosas jogaram um papel chave nessa transição, disse Mathew Flynn, um sociólogo, conferencista e especialista em Brasil na Universidade do Texas. “Eu imaginaria que instituições religiosas vão jogar um belo papel proeminente [em qualquer transição] no Oriente Médio”, disse Flynn.

O Partido dos Trabalhadores (PT), que atualmente detém o poder, foi formado em 1978 por militantes sindicais no coração industrial do país, ativistas religiosos da Igreja Católica e grupos de ativistas pelos direitos humanos. “Eles [o PT] foram bastante ativos no engajamento pela realização de eleições, junto a outros partidos independentes”, Flynn disse.

Dilma Rousseff, atual presidente e primeira presidente mulher do Brasil começou sua carreira política como guerrilheira de esquerda, combatendo a ditadura militar.

Lições a aprender?

Mas os atos revolucionários violentos não derrubaram o regime. “Quando o governo militar caiu, não escrevemos uma nova constituição imediatamente”, disse Amorim.

“Elegemos uma comissão que levou dois anos escrevendo uma nova carta”, num processo que se completou em 1988. Depois das eleições de 1989, o Brasil foi vastamente reconhecido como uma democracia.

Chile, Uruguai e Argentina também sofreram com os grilhões da dominação militar, assim como muitos outros países na região.

Mark Katz, professor na George Mason University, acredita que há uma “muito boa razão para crer que o Oriente Médio seguirá os passos da América Latina”. “As pessoas estavam bastante carentes de esperança quanto a isso [a democracia na América Latina], disse Katz. “Mas no fim deu tudo bem certo para a maioria. O que está se passando no Oriente Médio é incrivelmente positivo”.

Se Katz está correto, e o levante pelo Oriente Médio resultar em governos mais democráticos, é provável que isso implique o estreitamento de laços entre a América Latina e o Mundo Árabe.

Negócios em jogo

A primeira Cúpula América do Sul e Mundo Árabe teve lugar em Brasília, capital do Brasil, em 2005, com uma segunda edição em Doha, Qatar, em 2009. Até agora, o comércio é o que mais impulsiona a relação entre ambos. “O maior superávit comercial que o Brasil teve foi com o Mundo Árabe”, disse Amorim.

Além do Conselho de Cooperação do Golfo [GCC, em sua sigla em inglês] , que abrange países ricos em petróleo no Golfo Árabe, as economias árabes não são particularmente bem integradas. “Este é um campo [a integração regional] em que podemos compartilhar nossas experiências”, disse Amorim.

Fundado em 1991, o Mercosul, um bloco comercial formado entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai poderia fornecer um modelo para os países árabes, especialmente na África do Norte, falou o ex embaixador.

E a integração com o Mundo Árabe poderia trazer benefícios para além do incremento ao crescimento econômico, disse Jamie de Melo, professor da Universidade de Genebra, na Suíça, que estuda relações econômicas internacionais. “Países que são vizinhos e têm acordos comerciais, e acordos preferenciais parecem ser menos propícios a entrarem em conflito”, disse de Melo.

Além do comércio, o Brasil deu passos largos em questões mais amplas no Oriente Médio. O maior país da América do Sul reconheceu unilateralmente o estado palestino em dezembro de 2010, sugerindo aos outros países sul-americanos que o seguissem. O país também mantém relações cordiais com Israel.

“Em novembro de 2009 recepcionamos o presidente do Irã, de Israel e da Autoridade Palestina”, disse Amorim. “Quantos países podem dizer isso?”

Tradução: Katarina Peixoto

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