Eppur, si muove
Por: Sírio Possenti, no Terra Magazine
02/06/2011
Eppur…
Freud disse que o homem sofreu três feridas em seu narcisismo: a descoberta de que a Terra (portanto, o homem) não está no centro do Universo, a teoria da evolução das espécies (não fomos criados diretamente por Deus) e a descoberta do inconsciente (fatores que não conhecemos nos “determinam”).
Talvez se possa dizer que a antropologia e a linguística produziram outra ferida em nosso narcisismo. Descobriu-se que não é verdade que as sociedades que foram qualificadas de primitivas não tinham leis ou regras. Assim, não há “primitivos”: eles não viviam nem vivem como bichos (não têm fé, nem lei, nem rei…). Também não é verdade que as línguas “deles” são simples. Eles não grunhem! Eles falam seguindo gramáticas complexas e outras complexas regras “contextuais”. Só a total ignorância pode manter erros vulgares como estes (que, para muitos, continuam válidos não só para os primitivos, mas também para o povo).
Nas últimas semanas, ouviu-se troar a idéia de que estaremos perdidos porque se aceita “os livro” e “os menino pega” (não se sabe de onde tiraram o verbo “aceitar” para casos assim). Os que pensam que dizem “os livros” (a forma representa metonimicamente uma língua) acham que os outros não pensam (mas não citam fonte alguma sobre as relações língua/mente). Ora, tem sido constante a demonstração de que se pode pensar independentemente de línguas ou dialetos. A filosofia e a ciência elaboradas em diferentes línguas o demonstram há séculos. E as numerosas traduções o comprovam – apesar de algumas traições (que, às vezes, melhoram o original). Pensar não depende de pingar um “s” aqui e um “r” ali (o que se demonstra todos os dias).
O venerável Dines proferiu duas barbaridades em programa recente na TV: igualou escrever certo a escrever bem (citava Otto Lara Resende) e disse que Os livro põe em risco a compreensão. Tenho certeza de que Dinnes compreende os livro. Não estou “aceitando”, estou dizendo que é uma forma com sentido e que um sujeito como ele certamente a compreende. Insisto: errou feio quando traduziu “escrever bem” por “escrever “certo”. O angu nada tem a ver com as alças.
A peste que a lingüística “leva” (Freud afirmou que estava levando a peste aos EUA, quando foi lá fazer suas conferências) provoca engulhos nos que pertencem à nossa elite intelectual, porque falariam certo (mas não falam: eu ouço alguns deles todas as semanas, na TV; outros, esporadicamente; outros, conheço ao vivo).
Os que disseram que a Terra girava segundo leis diferentes das que constavam nas “gramáticas celestes” da época foram ameaçados com a fogueira pelos que tinham certeza de que sabiam como era o mundo. Também houve muitas perseguições a defensores das teorias evolucionistas. Os linguistas não correm riscos idênticos, claro (imagino!). Por enquanto, só estão sendo ameaçados com manuais bem leves e listas de erros (é “em domicílio”). Pelo menos por enquanto.
“Eles” pensam que a mudança da língua acabou. Que, finalmente, o português completou seu ciclo, ficou “certo”. Até “etimologistas”, que listam exatamente mudanças (que não explicam), acham que a língua parou de mudar agora. Estava esperando por eles! Eppur, si muove.
Esquerda?
A burrada das burradas foi a insinuação de o tal livro seria a defesa da fala “errada” de Lula. Ora, este tipo de estudo se faz há 200 anos, desde as gramáticas históricas, logo seguidas pelos estudos de dialetologia e pela escola variacionista. Muitos brasileiros escreveram sobre o tema bem antes dos atuais lingüistas (mas ninguém conhece a bibliografia!!).
Outros acharam que as posições “em favor” da variação linguística são de esquerda. Ora, não são! Se lessem Economia das trocas linguísticas, de Pierre Bourdieu, ou a Introdução à sociolinguística, de Marcellesi, por exemplo, veriam a diferença (mas eles não lêem!). Os “esquerdistas” chegam a detestar os estudos variacionistas. Consideram-nos funcionalistas, vale dizer, burgueses.
Por que defender esta abordagem, então? Porque ela permite que os estudos de língua cheguem pelo menos à era baconiana. (Francis Bacon é o nome do autor do Novum Organon, um filósofo dos XVI-XVII. Não é toucinho defumado).
Ciúme
Caetano escreveu que “esses linguistas têm grande ciúme do sucesso que fazem os professores de gramática que, oferecendo aquilo de que tem sede a grande massa, ocupam espaços em jornais e tempo no rádio e na TV”.
Controvérsias costumam desandar. Quase sempre, quando falta um argumento, os contendores passam aos ataques pessoais. Em vez de contestar uma análise, começam a dizer “é conservador”, “é esquerdista”, “é invejoso”, “é tucano”.
As atividades fundamentais de Caetano Veloso têm muito a ver com sucesso de público, o que talvez explique sua hipótese. Mas nem todas as pessoas sãopeople, nem todos os profissionais aparecem em jornais, em trios elétricos, na TV, nas revistas semanais, na Caras. Simplesmente não faz parte de seu trabalho. Nem de seu mundo. Os linguistas não são anjos, e certamente têm ambições. Mas preferem ser citados pelos pares a aparecer na TV. E, em geral, só falam do seu trabalho. Os que eu conheço não têm este tipo de ciúme. Talvez tivessem até vergonha, se aparecessem na TV dizendo aquilo. Como encarar os pares no dia seguinte? E os alunos?
Lembro de Caetano vaiado no Maracanãzinho, enfrentando a multidão. Gostei. Foi admirável.
Retirado do Blog Maria Frô
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