sexta-feira, 24 de junho de 2011

Razões da mídia para ignorar as greves

Reproduzo abaixo textos retirados do excelente Blog S.O.S Educação Pública:

RAZÕES DA MÍDIA PARA IGNORAR AS GREVES
 
A censura dos meios de comunicação às reivindicações dos docentes e às greves é proposital.

Leiam os textos abaixo e entendem os motivos dessa censura. A aparente preocupação desses veículos com a educação pública, a desqualificação dos docentes e a defesa da meritocracia na educação, estão intimamente ligadas a interesses que não têm nada a ver com a educação. 

Saiba também um pouco mais sobre o "especialista" Gustavo Ioschpe, no ultimo texto e a sua "relação" com a educação, é imperdível. Paulo Ghiraldelli Jr., coloca o "especialista" em seu devido lugar.

TEXTO 1: referente à série "Caravana da Educação" apresentada no Jornal Nacional.

A Globo e a meritocracia na educação

O Jornal Nacional começou uma espécie de "Caravana JN da educação" pelo país. Ela já havia sido anunciada desde a semana passada, com algumas reportagens sobre o "perfil" da educação brasileira.

Junto com a tal "caravana", o JN consulta sempre o famoso "especialista", espécimen acima de qualquer suspeita, oráculo do fato nu.

O "especialista em educação" da vez é Gustavo Ioschpe (curiosamente um economista, não educador), atento e anotando tudo em sua caderneta (outro símbolo de que ali tem um "especialista", visto que economistas da educação não usam jalecos brancos). Ioschpe escreve inclusive textos como esse, condenando os sindicatos existentes e favorecendo certa ideologia da meritocracia.

Para o meritocrata a meritocracia não é uma ideologia.

Mas é muito curioso notar aqui algo muito simples. Ninguém nega que o mérito é um valor inerente às relações trabalhistas, pelo menos desde que "teorias" de famosos "gestores" brasileiros como Carlos Augusto Taunay (considerados bastante "humanistas" e "técnicos" na época) saíram de moda. O mérito sempre se põe ao lado de perspectivas gerenciais, teorias motivacionais e também gestão de recursos, obviamente.

A tese implícita do JN é a de que o problema é muito mais econômico e de gestão do que relativo à educação. E isso tudo se resolveria por certa gestão baseada no mérito.

O JN até acerta aqui e ali, pois do governo ao professor é muito pouco provável que o sistema educacional brasileiro seja educacional de fato e de direito. Basta ver a eterna busca de bodes expiatórios (também exercitada no Jornal) que vai do gestor à família do aluno: o problema está sempre em todo lugar (pois tudo está errado) e nenhum lugar (pois para o professor o problema está na família e na gestão; para a família o problema está no professor e no gestor etc. etc…).

Mas na tal "prática", no sistema educacional brasileiro ocorre algo semelhante a diversas outras esferas brasileiras: uma espécie de pacto coletivo no qual toda e qualquer eficácia se transfere unicamente à competência de um de seus agentes, no caso o professor. Não é à toa por exemplo que o JN, compartilhando desse jogo de bodes expiatórios, olha com tanta atenção ao professor. E não é à toa que cada "bom" professor (veja-se aí a individualização de uma questão coletiva: o professor "bom", o "ruim" etc.) é obrigado a carregar consigo toda hora uma narrativa épica sobre seu próprio esforço. No Brasil, não há sistema a reger efetivamente e sob critérios institucionais mínimos a separação entre o que é um professor e o que não é, tornando a análise sempre um infinito caso a caso (daí a eterna necessidade do bom professor se valorizar enquanto o professor ruim, que é por definição um não-professor, ser suficientemente preservado para se preocupar apenas com a novela de amanhã).

Mas se naquelas linhas gerais o JN está aqui e ali "certo", ele se equivoca totalmente quando pretende passar por baixo do tapete aquela certa noção de gestão meritocrática.

Se o mérito é evidente em qualquer relação de trabalho do mundo civilizado, desconfie-se quando alguns, pregando uma suposta ausência de ideologia, colocam o mérito como noção regedora de todas as outras. E a desconfiança nunca é demais quando requerem para um assunto de educação (a relação professor-aluno, por exemplo) o papel de um economista. Comprando o valor do mérito - o que é correto e até redundante, pois qual relação de trabalho não preza em tese o mérito? -, o espectador acaba comprando algo mais, pois pretende-se vender um modelo inteiro de gestão embasado em certa perspectiva de mérito.

E esse modelo de gestão meritocrático, muito bem assinalado pela revista apreciada pelo "especialista" do JN, deriva de círculos como o do ex-ministro Paulo Renato (não por acaso Ioschpe está no "conselho de governança" de uma ONG na qual Paulo Renato é "sócio-fundador", os dois organizaram livros juntos, apresentaram palestras de linha comum e outras coisas mais);

Já comentamos aqui (veja o texto "Entre o meriocrata e o tecnocrata: o mundo é dos espertos" no final  )sobre as implicações destruidoras desse modelo (comparar o artigo de Ioschpe com o texto do link). Diante dele, não é por acaso a ênfase no professor. Ao invés de um sistema prévio regendo algo chamado "educação", em termos gerais o meritocrata brasileiro radicaliza a não existência desse sistema prévio maquiando-o com um pretenso rigor quantitativo. Como se vê no link acima, isso não garante nem a existência de bons professores, nem a existência de um sistema educacional.

Tenta-se passar a idéia de uma gestão não ideológica, quando no fundo a gestão da educação se reduz a um problema econômico de simples gestão. Qual educador concordará com isso? Nessa série de hipostasias, tenta-se apenas dar um jeito no jeitinho.
 

FONTE: http://catatau.blogsome.com/2011/05/17/o-jn-e-a-meritocracia-na-educacao/




Texto 2:  Análise da entrevista  do ex-ministro Paulo Renado de Souza, publicada na Revista Veja  Edição 2136 - 28/10/2009  

Entre o meriocrata e o tecnocrata: o mundo é dos espertos"


Na edição de Veja da semana, a revista entrevistou Paulo Renato de Souza, ex-ministro da educação do governo FHC e secretário da educação do governo Serra.

O título da entrevista na edição on-line dá o tom: "Contra o corporativismo: O secretário da Educação de São Paulo diz que sem meritocracia não haverá avanços na sala de aula - e que os sindicatos são um entrave para o bom ensino".

O que parece interessante é a idéia que Paulo Renato pretende fazer passar por debaixo do tapete: a "meritocracia", contra o "corporativismo" dos professores brasileiros.

Convenhamos que a idéia da "meritocracia" é algo um tanto quanto "atraente" dentro de certa linguagem administrativa, organizacional, corporativa enfim. Interessante para muitos, portanto. Contra o "corporativismo" do ensino, a linguagem corporativa do "gestor" educacional. Afeita a esse tipo de slogan, a reportagem de Veja continua: "É preciso premiar o esforço e o talento para tornar a carreira de professor atraente. O bom ensino depende disso".

Contra o corporativismo, é preciso premiar esforço e talento individuais. "Os sindicalistas são um freio de mão para o bom ensino", e "É preciso discutir a educação com mais objetividade e menos ideologia". Mas será só isso?

"Mais objetividade e menos ideologia": o ponto de partida é interessante porque Paulo Renato identifica, de saída, uma espécie de discurso "marxista" nos sindicatos dos professores e em suas categorias organizadas. Se não há "marxismo", há algo semelhante a um marxismo, de inspirações mais ou menos (diga-se) socializantes. E esse "marxismo" se alastraria não apenas entre professores e sindicatos, mas também na própria formação universitária. Afastados da "prática", os centros universitários apenas reproduziriam certo discurso "ideológico".

Não entraremos em questão sobre a definição de "ideologia" (nem sobre como qualquer marxista não julga ter um discurso "ideológico", mas pelo contrário, pretende acusar todos eles). Paulo Renato desqualifica essa suposta ausência de prática, nas universidades, acusando certa "ideologia". Portanto, "ideologia" implicaria ensino ruim e distância da prática:

Às universidades que pretendem formar professores, mas passam ao largo da prática da sala de aula. No lugar de ensinarem didática, as faculdades de pedagogia optam por se dedicar a questões mais teóricas. Acabam se perdendo em debates sobre o sistema capitalista cujo ideário predominante não passa de um marxismo de segunda ou terceira categoria. O que se discute hoje nessas faculdades está muito distante de qualquer ideia que seja cientificamente aceita, mesmo dentro da própria ideologia marxista. É uma situação difícil de mudar. A resistência vem de universidades como USP e Unicamp, as maiores do país.

E a primeira curiosidade de sua entrevista aparece aqui: no mesmo movimento em que Paulo Renato acusa o discurso universitário de ser um marxismo de terceira, identifica esse mesmo discurso à posição "ideológica" dos professores e inclusive de seus modos de organização. Tudo "ideologia", e "de terceira". Contra as generalizações teorizantes da "academia" enxergada por PR, sua generalização ("ora, são todos ‘marxistas de terceira’"). E contra a "ideologia", nada melhor do que o "objetivismo".

O que é mais "objetivo" do que a ideologia? Dissolver "objetivamente" o "corporativismo" é defender uma educação que privilegie as diferenças e competências individuais,

O maior problema no Brasil não é a falta de dinheiro, mas como esses recursos são empregados - em geral, de maneira bastante ineficaz. Daria para obter resultados infinitamente superiores apenas fazendo melhor uso das verbas já existentes. Prova disso é que, com orçamento idêntico, algumas escolas públicas oferecem ensino de ótima qualidade e outras, de péssimo nível.

O que explica isso?

As boas são comandadas por diretores com uma visão moderna de gestão, coisa raríssima no país. Não existe no Brasil nada como um bom curso voltado para treinar esses profissionais a liderar equipes ou cobrar resultados, o básico para qualquer um que se pretenda gestor. Quem se sai bem na função de diretor, em geral, é porque tem algo como um dom inato para a chefia. A coisa funciona no improviso.
, do mesmo modo que se tem uma noção ingênua de "prática" (contra a "ideologia", as "teorias" e afins):

As avaliações sempre chamam atenção para o despreparo dos professores brasileiros. A que o senhor atribui isso?

Às universidades que pretendem formar professores, mas passam ao largo da prática da sala de aula. No lugar de ensinarem didática, as faculdades de pedagogia optam por se dedicar a questões mais teóricas. Acabam se perdendo em debates sobre o sistema capitalista cujo ideário predominante não passa de um marxismo de segunda ou terceira categoria. O que se discute hoje nessas faculdades está muito distante de qualquer ideia que seja cientificamente aceita, mesmo dentro da própria ideologia marxista. É uma situação difícil de mudar. A resistência vem de universidades como USP e Unicamp, as maiores do país.

Como isso se reflete nas escolas?

Muitos professores propagam em sala de aula uma visão pouco objetiva e ideológica do mundo. Alguns não dominam sequer o básico das matérias e outros, ainda que saibam o necessário, ignoram as técnicas para passar o conhecimento adiante. Vê-se nas escolas, inclusive, certa apologia da ausência de métodos de ensino. Uma ideia bastante difundida no Brasil é que o professor deve ter liberdade total para construir o conhecimento junto com seus alunos. É improdutivo e irracional. Qualquer ciência pressupõe um método. No ensino superior, há também inúmeras mostras de como a ideologia pode sobrepor-se à razão.

E aí começamos a catar as peças do que significa tal educação "objetiva", contra as "ideologias". Em primeiro lugar ela preza não uma categoria educacional, mas diferenças individuais. Essa é a fonte da tal "meritocracia". Mas que tipo de critério evidencia as diferenças individuais? Paulo Renato sinaliza (em uma pérola, convenhamos): o "dom inato" para a "chefia" e o "improviso". Linguagem corporativa sobreposta à pedagógica, fique bem claro. E o "dom inato" se une a outros fatores um tanto quanto curiosos, a defesa de uma certa "razão" (sic) baseada em métodos universalizantes identificados por ele com a "ciência", e enfim tudo ligado à "prática".

Lembremos que tudo isso é "objetivo", portanto, "não ideológico". É certo que existe má formação universitária e uma gigantesca parcela dos professores formados confundem achismo com a aplicação de métodos sócio-interacionistas, por exemplo. A queixa de Paulo Renato certamente se dirige a uma confusão entre esses métodos e a má formação (embora cheire certo gosto por perspectivas educativas tecnocráticas).

Mas aí, nas entrelinhas, Paulo Renato acaba dizendo o que não gostaria: se há tantos professores ruins, se há tanta falta de "metodologia" (como ele quer fazer parecer), será esse um problema a ser resolvido por meritocracia? Não se torna gritante, antes da avaliação meritocrática ou qualquer outra, a necessidade de algo semelhante a uma auto-gestão ou auto-regulação do ensino? Para cogitar a possibilidade de um sistema meritocrático, não seria necessário cogitar antes a possibilidade de um sistema educacional, por excelência? Ora, qualquer teoria gerencial "razoável" (talvez o próprio Paulo Renato diria assim) pressupõe que para uma correta avaliação dos efeitos (as recompensas individuais, os méritos) deveria haver uma correta colocação das causas (por exemplo um conjunto de condições prévias que favoreça verdadeiras relações de ensino, do material didático ao salário dos professores e às condições dos alunos), um plano prévio com fatores muito bem definidos, impedindo que a meritocracia não seja meramente uma tapação de buracos e uma discriminação generalizada travestida de gestão.

Talvez Paulo Renato resvale na idéia de que a existência de qualquer meritocracia (ou qualquer outro modelo) só tem sentido dentro de um certo plano prévio, de algo que possa ser chamado previamente de um sistema, que no caso em questão é de ensino. Sistema que ele mesmo reconhece não existir de fato e de direito quanto afirma que uma escola boa se diferencia de uma ruim por méritos individuais (do diretor, do professor, etc.). Se é assim, se são as características individuais que permitem dizer que aqui há educação ou aplicação de investimentos e ali não há, que esse professor é um educador verdadeiro e aquele não, qual é o plano das escolas, o "sistema" que as rege, dado que Paulo Renato mesmo, ao propor o modelo meritocrático, reconhece que de saída pode ou não haver educação no sistema "educacional"?

Qual é o plano prévio da educação brasileira, dado que aqui há educação e ali não há? Paulo Renato não enfrenta a questão, aliás fundamental para qualquer um em sua posição. Para ele, antes da educação "objetiva" e meritocrática partir de um solo brasileiro, deve se reger por um horizonte anglo-saxão:

Em culturas mais individualistas e competitivas, como a anglo-saxã, as aferições do nível dos professores e do próprio ensino não são apenas bem-aceitas como têm ajudado a melhorar as escolas, na medida em que fornecem um diagnóstico dos problemas. Os professores brasileiros que agora resistem a passar pela avaliação certamente não estão atentos a isso. Sua maior preocupação é lutar por direitos iguais para todos - velha bandeira que ignora qualquer noção de meritocracia. Por isso, eles se posicionaram contra uma regra do projeto que limita o número de promoções por ano: não mais do que 20% dos profissionais poderão subir de nível. É um teto razoável: evita um rombo no orçamento e, ao mesmo tempo, promove uma bem-vinda competição. Demandará mais empenho e estudo dos professores - o que não lhes fará mal.

Culturas "individualistas e competitivas" talvez sejam assim por certas garantias prévias concedidas aos indivíduos e competidores. Garantias prévias oferecendo de fato uma regulação meritocrática, e muito provavelmente uma margem maior do que 20%. Falávamos de meritocracia ou de restrições orçamentárias? Daí a queixa de PR contra o "corporativismo". O ex-ministro é contra a isonomia:

No campo salarial, premiar o mérito significa romper com o conceito da isonomia de ganhos para todos os funcionários. Esse não é um valor que deveria ser preservado?

Não. Já é consenso entre especialistas do mundo todo que aumentos concedidos a uma categoria inteira, desprezando as diferenças de desempenho entre os profissionais, não têm impacto relevante no ensino. O que faz diferença, isso sim, é conseguir premiar os que se saem melhor em sala de aula. A isonomia é uma bandeira velha.

Um exemplo dessa coesão de categoria é o das faltas justificadas: elas são uma prática institucional (não necessariamente formal) tão generalizada que não se reduz ao estado de São Paulo. Outro exemplo é a recusa dos sindicatos quanto às provas aplicadas a professores, dada a ausência de tempo para um professor se preparar. Paulo Renato chama os sindicatos de "retrógrados" - supostamente eles não defendem a educação, apenas a categoria. Certamente, existem sindicalistas de todo tipo, como também certos tecnocratas não conseguem vestir totalmente a pele de cordeiro. Mas poderíamos ainda forçar os olhos e perceber o que significam tais medidas da "categoria", tanta "resistência", tanto esforço por "isonomia": nos exemplos anglo-saxões, tão apreciados por PR, a meritocracia se rege por mérito propriamente dito, não absolutamente por restrições orçamentárias. Em termos de oportunidade, se a meta é ser como os gringos, a impressão a se deixar nos professores não deveria ser a de um teste para o Instituto Indiano de Tecnologia. Falávamos de mérito, de uma fiscalização dos efeitos dadas certas condições prévias - não de oportunidades rarefeitas.

Será que a "categoria", tão mal vista por Paulo Renato, defende absolutamente direitos retrógrados? Não seria o contrário, a defesa da existência de direitos prévios? Mesmo que existam sindicalistas mordedores de osso (algo contrário à generalização), não é difícil ver o quanto a esmagadora maioria dos professores concorda com certas linhas dos sindicatos, especialmente as que propoem esses direitos prévios. Ora, há algo de errado quando se admite que dentro das escolas pode haver ou não educação - portanto não existe ponto inicial algum, regulação alguma, e a meritocracia seria apenas uma medida paliativa e de fácil manejo, dando aparência de eficiência em um sistema em colapso.

Aliás, um "sistema" de regulação das condutas individuais já existe, no Brasil. Chama-se "jeitinho". Em Tropa de Elite, os policiais inclusivem chamam esse conjunto de subterfúgios de "sistema". Na falta de relações formais, na falta de um sistema educacional, existem aqueles professores que ensinam, e alguns outros que vivem do subterfúgio. Na falta de um sistema educacional, pode haver ou não educação. Convenhamos que esse abandono dos professores e das escolas à escolha individual por haver ou não educação apenas se agravou em governos de ideologia próxima à de PR, por exemplo nas mudanças no regime das reprovações condicionados não a fatores pedagógicos, mas sobretudo a financiamentos de grandes instituições estrangeiras. E o próprio PR defende que seu critério absoluto não é pedagógico, mas financeiro.

Daí o ex-ministro querer também fazer passar por baixo do tapete certa associação entre a avaliação continuada de um sistema e a necessidade desse sistema ser meritocrático. Ora, nem todo sistema auto-regulado e eficiente é meritocrático. E vice-versa, nem todo sistema meritocrático é eficiente, ou mesmo corresponde de fato o que prescreve de direito. A meritocracia é sempre uma regulação, digamos, a fortiori, por decorrência. É uma regulação "segunda", como dito acima. Para haver mérito deve haver antes um sistema nivelador dos méritos prévios. Senão como avaliar qualquer produtividade? Qualquer empresário interessado na produtividade de seus funcionários estabeleceria critérios "objetivos" (como quer PR) para que sua avaliação seja algo mais do que um achismo, e seu procedimento seja algo mais do que uma discriminação deliberada. Só é curioso não vermos o mesmo interesse em um ex-ministro e pretenso candidato, tão afeito aos jargões corporativos.

Querendo fazer a educação brasileira parecer com a gringa, Paulo Renato só esquece de avisar ao leitor que os resultados gringos provém de condições gringas.

Há diversos outros pontos problemáticos em sua entrevista (por exemplo, a denúncia do mal uso das verbas públicas na educação, e depois a defesa da educação paga para suprir as próprias verbas). Mas o notável é essa aparência de linguagem eficiente e gerencial no meio do contexto brasileiro. Linguagem atraente para alguns, mas cujos efeitos não são tão atraentes assim a ninguém.


Texto 3: Artigo publicado pelo Observatório da Imprensa


LEITURAS DE VEJA



A direita emburreceu de vez?


Por Paulo Ghiraldelli Jr. em 15/07/2008 na edição 494

"Não é preciso ser burro para ser de esquerda." Esta frase de Fernando Henrique Cardoso, na condição de presidente da República, é uma das mais corretas e bem elaboradas que ele já cunhou para o mundo jornalístico. Começo a acreditar que a frase simétrica, contemplando a direita, não vale. Estou dizendo, então, que para ser de direita é necessário ser burro? Pode não ser assim no exterior, mas, no Brasil, a condição política conservadora está indo de mal a pior.

A situação da revista Veja tem estampado isso. Os articulistas que a revista apresenta estão cada vez menos preparados. O caso de Gustavo Ioschpe salta aos olhos. O que ele escreve deixa qualquer pessoa relativamente bem informada totalmente estarrecida. Pego aqui o rabisco dele chamado "Errar é humanas" (Veja, 30/06/08).

Eu vou citar as pérolas gustavianas e sigo depois com breves comentários. Segurem-se na cadeira.

"Eu só descobri que não entendia nada de matemática quando conversava com um colega russo, no mestrado, sobre o assunto. Aquilo que para mim exigia um grande esforço mental, de montagem de equações e de tentativa de operações algébricas, para ele era visivelmente algo automático, instintivo, como a construção de uma frase em sua língua natal. (...)"

O afastamento do empírico

Sim! Ele é economista, uma área em que sem a matemática é impossível sobreviver. Mas ele diz que não sabe matemática! Agora dá para entender por que produziu aquela estatística, já denunciada por mim e outros, querendo mostrar que a ampliação de salários de professores não melhora a educação. Pronto, é isso: ele errou na estatística, é claro. Não sabe matemática.

E ele continua:

"O problema é fundamentalmente filosófico, epistemológico: a maioria das pessoas entende a matemática como uma ferramenta que precisamos dominar para resolver alguns problemas do cotidiano. Mas a matemática não é isso. A matemática é uma linguagem que descreve o mundo. Todo o mundo físico é traduzível em números, com acuidade muito maior do que a descrição feita por palavras. Além disso, a matemática é a árvore da qual brotam os frutos das ciências exatas: física, química, biologia, estatística, engenharia, medicina – nada disso seria possível sem a matemática. (...)


Sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese."


Mas Gustavo, veja, meu caro, as matemáticas não se desenvolveram para então gerar as ciências, elas caminharam juntas. Além disso, sua frase "sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese" é exatamente a frase que nega o poder da matemática. Ela é exatamente a disciplina que não suporta a empiria! Ela é o afastamento do empírico, par excellence.


A Caverna de Platão


Leitor, você agüenta mais um pouco? Sim? Então, tome:

"Eu só fui descobrir isso [que disse acima] quando já estava no mestrado. De tudo que estudei na vida – e acabei estudando, na faculdade, história, ciência política, psicologia, sociologia, economia, geologia, marketing, administração, contabilidade, crítica literária, filosofia e outras que nem me lembro mais, não apenas por desejo e curiosidade próprias, mas porque o sistema americano impõe essa multidisciplinaridade – hoje vejo que a matéria mais importante é estatística. Achava a matéria um porre quando a cursei, no primeiro ano. O que é natural, aliás: aos 18 anos, o cérebro humano está demasiadamente encharcado de hormônios para que os pensamentos possam nadar. Agora vejo que a estatística é a base de tudo, é o que possibilita a distinção entre a opinião e o fato, a aparência e a realidade (as ‘formas’ platônicas). Sem estatística não pode haver ciência exata nem ciência social."

Viram? Eu tenho criticado o que chamei de PTE, o Pensamento Tecnocrático em Educação, que é capitaneado pelo "grupo da Veja", "grupo do Paulo Renato" e, enfim, o que agora também está no MEC, com Fernando Haddad imitando a secretária de Educação de São Paulo em tudo que é conservador. O PTE é isso: a apologia da estatística. Mas não a estatística inteligente, e sim, a estatística tomada como panacéia. É uma espécie de "ideologia do cientificismo da estatística". Isso é ignorância.


Gustavo é tão ignorante que ele quer resolver o problema filosófico "aparência versus realidade" com estatística! Os sistemas filosóficos não resolvem o problema. Eles não apareceram para fazer isso. Eles apareceram para equacionar o problema da relação entre ilusão e aparência (se é que esse problema existe).


Platão não quis renegar o mundo existente, o aparente, para impor a todos o mundo das formas; o que ele fez foi mostrar que, como homens, vivíamos em ambos: um é o mundo inteligível, o outro é o sensível. Um mundo, nós acessamos pelo intelecto, o outro, acessamos pelos sentidos. A Caverna de Platão não é um lugar, é uma condição – carregamos nas costas nossa Caverna quase como a tartaruga carrega a casca. A tartaruga carrega a casca e pode até imaginar que teria como eliminá-la. Pode imaginar que, uma vez sem a casca, viria a se apresentar como realmente é, na sua essência de tartaruga – a tartaruga real. Mas ao perder a casca, morreria, e morreria sem ser tartaruga, e sim, como uma tartaruga desfigurada.


"Otimismo despropositado"


Quando cometo um erro de cálculo ou de percepção e sou avisado, ou descubro o erro por mim mesmo, eu o corrijo. Assim, estou no âmbito do que a ciência faz, e também o senso comum. Agora, no âmbito da ilusão metafísica (ou no âmbito do que Marx chamava de ideologia), não posso fazer algo que se chame "correção". Posso mostrar que o que é visto pelos olhos do corpo não é o correto, e este, o correto, seria visto pelos olhos da razão, mas isso não elimina a visão dada pelos olhos do corpo. Nesse sentido, não há como "corrigir" uma ilusão metafísica. Por isso mesmo, cada sistema filosófico elege como ilusão coisas completamente diferentes. E, para a filosofia metafísica, a ilusão faz parte da estrutura do mundo e por isso mesmo ela não pode ser eliminada, corrigida. Para Kant, a ilusão necessária era, por exemplo, Deus. Para Marx, a ilusão necessária – a ideologia – era o fetichismo da mercadoria em associação com a reificação. Essas "ilusões" não são eliminadas por "correção". Muito menos por estatística!


Gustavo não entendeu nada de filosofia. E pior, não entendeu nada de estatística, pois a estatística é justamente a "não exatidão" da matemática. Estatística é o mundo da probabilidade e, portanto, a introdução da não exatidão no campo que se pensa rei da exatidão.


Acabou? Não, não! Ele não pára assim, não. O meninão é um poço inesgotável de frutos de quem nasceu de onze meses. Segue mais:

"Essas idéias me vêm à mente quando vejo que filosofia e sociologia foram incluídas como matérias obrigatórias no currículo do ensino médio. Veja só: nosso sistema educacional é um fracasso tão retumbante que, na última medição em que o desempenho dos alunos foi dividido em níveis, o SAEB de 2003 apontou que 55% dos alunos da quarta série estavam em situação crítica ou muito crítica em leitura, o que quer dizer que eram praticamente analfabetos. A maioria dos alunos que faz a prova de Matemática no SAEB acha que ‘3/4’ é 3,4, e não 0,75. Não entendem nem a notação de uma fração. Achar que esses professores, com essa qualidade, conseguirão ensinar filosofia e sociologia a esses alunos é o que os ingleses chamam de wishful thinking, um otimismo despropositado."



A "leitura do mundo"


Bem, vejam que ele confunde as habilitações, ele acha que todo professor é despreparado. O professor de filosofia, que não ensina matemática, seria um despreparado. O aluno vai mal de matemática e ele culpa, de antemão, os professores de filosofia e sociologia que, aliás, nem bem começaram o serviço! Veja só como ele, em vez de se guiar por estatísticas, tem como guia o preconceito.


Só mais um pouco de gustavice, por favor. Agüente a última dose.

"No primeiro semestre da faculdade, li um texto muito bom de Paulo Freire, em que ele dizia que era preciso read the word to read the world (ler a palavra para ler o mundo). Não sei se ele o escreveu em inglês ou se a tradução foi especialmente fortuita, mas o enunciado é verdadeiro: é impossível entender a complexidade do mundo se você não sabe ler."

O trecho acima é significativo. Mostra como nossas elites, não raro, erram na educação dos filhos. O menino Gustavinho é rico. Foi estudar nos Estados Unidos quando ainda não tinha maturidade para tal. Lá, no exterior, o professor deu para ele ler o Paulo Freire, um brasileiro. Poderia ter lido aqui mesmo, de modo correto. Mas quis ler errado, pagando caro para tal, lá nos Estados Unidos.

Por que ele, Gustavinho, está errado? Ora, o que Paulo Freire disse é o inverso do que ele escreveu (em inglês).

Paulo Freire escreveu, é claro: lemos o mundo para depois lermos a palavra. O que Paulo Freire queria com isso, baseado no historicismo de Hegel e no pragmatismo americano, era nos fazer notar que antes de qualquer aprendizado formal, escolar, temos uma concepção de mundo adquirida a partir de nossas vivências. Isso é o que já estava em John Dewey: antes de tudo, vem a experiência (que não deve ser tomada como experimento), que então é continuamente re-significada (Rorty diz: redescrita). Então, o aprendizado escolar se dá sobre o que já aprendemos na nossa "leitura do mundo". Daí a idéia freireana de insistir na prática educativa que leva a sério o que já sabemos antes de aprendermos a leitura e a escrita.



A ladainha de sempre



Ora, a conclusão que Gustavo tira do Paulo Freire, que ele copiou errado, é que precisamos aprender a ler e a escrever. Mas isso é o óbvio, ninguém pensaria o contrário. E quem iria citar um filósofo da educação, como Paulo Freire (ou qualquer outro), para dizer o que é uma evidência e um consenso do senso comum? Só um tolo.


No final do artigo "Errar e humanas", Gustavo então desanda a falar mal do marxismo que estaria impregnado em professores de filosofia, e se volta contra o ensino de filosofia e sociologia na escola média. A ladainha de sempre. Mas a essa altura já perdeu toda a moral. Então, alguém que é sadio pára a leitura, não há como continuar a ler seu texto. É isso! A direita está cada vez pior.


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